O meu tirano é melhor que o teu 🇨🇳

  • 16.10.2025 10:15
  • Bruno A.

4 meses depois de regressar da China, o nosso editor faz uma reflexão sobre aquilo que viu e sentiu em 30 dias no país. Se as atracções e destinos turísticos corresponderam às expectativas, bem menos linear foi a sua relação com a realidade económica, política e social do Império do Meio.

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“Cut the head off
Grows back hard
I am the Hydra
Now you’ll see your star

Antichrist Superstar, Marilyn Manson (1996)

Passaram-se mais de 4 meses desde que regressei da China, e ainda não sei como lidar com a forma surpreendente como o país me arrebatou. Não do ponto de vista turístico, que aí já sabia perfeitamente que me ia apaixonar pela natureza pristina, cultura milenar, sabores exóticos e arquitectura singular. Mas sim pelo país no seu estado actual – económico, político, social.

O choque dá-se assim que saio do Vietname pela fronteira de Lao Cai e entro em território Chinês através da pequena cidade de Hekou, no sul do país. Depois de caminhar por 100 ou 200 metros em No Man’s Land, a sensação não é a de que entrei num novo país, mas sim de que fui repentinamente teletransportado para uma outra realidade. Num ápice, as ruas atmosféricas mas admitidamente barulhentas e desordenadas do Vietname dão lugar a avenidas imaculadamente limpas e infraestrutura de topo, com o mar de motociclos substituído por uma moderna e silenciosa frota de carros eléctricos. Uma surpresa ainda maior, se considerarmos que Hekou tem uma população inferior a 100.000 pessoas, o que para a realidade Chinesa praticamente equivale a uma aldeia esquecida na profundidade do Portugal rural.

Uma pequena e ainda insignificante amostra do que haveria de se prolongar ao longo de 30 dias, estava pronto a embarcar no comboio rumo a Kunming, maior cidade da Província de Yunnan. Antes disso, entro numa lojinha de vão de escada mesmo ao lado da estação, semelhante a qualquer mercearia tradicional portuguesa, não fossem os pacotes de batatas fritas e gomas substituídos por snacks locais como patas de galinha marinadas ou lulinhas em molho picante. Junto à caixa, reparo que está exibido num ecrã um gigantesco sistema de videovigilância com mais de 5 câmaras, uma cena que se haveria de repetir ao longo de toda a China em qualquer estabelecimento aberto ao público. Cafés, bares, restaurantes, lojinhas. Bancos, edifícios públicos, estações de transportes públicos, centros comerciais. Independentemente de o negócio ser grande ou pequeno, público ou privado, podes ter a certeza de que existem câmaras em qualquer esquina. Até em parques nacionais como Zhangjiajie, num trilho perdido nos confins das montanhas, é possível encontrar câmaras plantadas em sítios estratégicos.

Goste-se ou não, a verdade é que este sentido constante de alerta ajuda a fazer da China um dos países mais seguros do mundo, perfeito para – no meu caso – fazer a primeira viagem com um bebé. Um pouco à semelhança dos países mais ricos da Península Arábica, é possível deixar literalmente a tua carteira ou computador em qualquer lado, que podes ter a certeza absoluta que ninguém lhe toca. Se é por civismo, boa qualidade de vida ou terror absoluto das potenciais consequências, isso já não consigo dizer. A verdade é que essa omnipresença vigilante acaba por traduzir-se num ambiente extremamente seguro.

Voltando à pequena loja de Hekou, e depois de escolher alguns petiscos para a viagem de comboio, a transacção é feita através das apps de pagamento Chinesas. Afinal, a China é provavelmente a sociedade mais cashless do mundo, ao ponto de não ter precisado de levantar dinheiro uma única vez num mês inteiro. Tudo é feito através de WeChat ou Alipay, duas apps que funcionam um pouco como o MB Way, mas em esteroides. É simples, rápido e prático, e apesar de ambas as plataformas serem tecnicamente privadas, são altamente reguladas pelo Banco Central da China, que por sua vez segue as directrizes governamentais do Partido Comunista Chinês. Uma vez mais, é fácil render-me à simplicidade da logística de pagamentos, para além de tornar virtualmente impossível a fuga ao fisco por parte dos negócios.

No outro lado da caixa, está uma rapariga que aparenta ser pouco mais velha do que eu, totalmente colada ao telemóvel. Com uma velocidade supersónica, vais fazendo scroll pelas redes sociais e assistindo a meros segundos de vídeos de curta duração. Não sendo um exclusivo da China, a relação dos povos da Ásia Oriental com a tecnologia e a social media é certamente caso de estudo. No entanto, no caso do Império do Meio, a população habita uma espécie de ecocâmara digital onde tecnicamente não entra ou sai ninguém. Afinal, desde o final da década de 90 que a internet na China é altamente restrita através do que ficou conhecido como a Great Firewall of China (um trocadilho com a Muralha da China). Através deste sistema de regulação e bloqueios, grande parte dos recursos digitais do resto do mundo não estão disponíveis na China.

Isto significa que, em território Chinês, não existe acesso a redes sociais como Facebook, Instagram ou Twitter/X, aos serviços da Google (motor de busca, maps, etc.) nem à maioria dos sites da world wide web. A única forma de dar a volta a isto passa por recorrer a uma VPN, mas são muito raras as que funcionam adequadamente e, entre as que de facto resultam, não é garantido que não tenham uma mãozinha do governo (alternativamente, podes usar um eSIM). No entanto, o público Chinês acaba por estar alheio ao facto de viver numa redoma de vidro tecnológica. Afinal, todas as grandes apps mundiais têm uma versão local considerada “higiénica” pelo governo. O Douyin é o TikTok, o Weibo é o X, o Baidu Maps é o Google Maps, o Taobao serve de Amazon e o Xiaohongshu de Instagram. Tudo plataformas com características semelhantes às congéneres ocidentais, mas com o selo de aprovação do PCC, que tem luz verde para monitorizar e moderar os conteúdos.

Se a princípio estas restrições eram altamente aborrecidas, com o tempo (e uma boa VPN) lá me fui ambientando à ideia. A cada visita às redes sociais ocidentais, progressivamente transformadas em autênticas espirais de fake news, whataboutism, sensacionalismo e incitação de massas, mais compreendo a política Chinesa. Bem à frente do teu tempo, desde cedo a China percebeu a forma como as redes sociais e o infame algoritmo podem ser manipulados para afectar o cenário político e a coesão social. Bom, se alguém tem que manipular o que a população vê, que seja o poder instalado – terá sido este o raciocínio do Politburo.

Depois de conseguir que a rapariga tirasse os olhos do telemóvel para registar a compra, é então hora de embarcar. Desde logo, é impossível não ficar impressionado com o sistema de caminhos-de-ferro da China, que ostenta a maior rede de passageiros do mundo e a segunda rede global (mercadorias + passageiros) do planeta. Mesmo no fim do mundo que é Hekou, a estação é moderna e extremamente organizada, com um serviço pontual ao segundo. Noutras cidades incomparavelmente maiores, as estações são autênticos terminais de aeroporto, com scanners de segurança, portas de embarque e espaços de comida e bebida espalhados pelos seus gigantescos espaços. Os bilhetes não são propriamente baratos, mas tendo em conta os comboios de alta-velocidade, a fiabilidade do transporte e o conforto, a verdade é que esta é de longe a melhor forma de viajar pela China. Para além disso, se compararmos com os shinkansen no Japão, as tarifas são muito mais em conta.

No entanto, o desenvolvimento das infraestruturas Chinesas não se fica pela ferrovia – longe disso! Por todo o país, poderás encontrar sistemas de metro de ponta, estradas bem-mantidas até nos locais mais recônditos, pontes futuristas, cidades inteligentes, fontes de energias renováveis, serviços automatizados e até mesmo uma estratégia geopolítica de soft power que alarga o desenvolvimento Chinês a vários países Asiáticos (ver Belt and Road Initiative). Uma vez mais, é impossível não ficar impressionado com as dimensões dos projectos ou a visão a longo prazo. E é aqui que vou reparando que, à medida que o tempo passa, dou por mim não raras vezes a elogiar o PCC e as suas políticas. A forma como tiraram incontáveis milhões de pessoas da miséria, como transformaram uma nação partida numa potência mundial, ou de como fizeram uma arte da política do pau e da cenoura – se te portares mal, levas o pau; se seguires as regras, a cenoura – não deixa de me merecer rasgados elogios.

No entanto, essa minha estranha admiração pelo PCC obrigou-me nos últimos meses a fazer uma introspecção altamente desconfortável. Afinal, tudo aquilo que tanto elogio na política Chinesa vem acompanhado de um lado obscuro que, muito francamente, não está sequer escondido. Sim, as câmaras por toda a parte aumentam a sensação de segurança e praticamente fizeram desaparecer os índices criminais, mas são também utilizadas como ferramentas de monitorização de opositores políticos e minorias étnicas. Sim, as apps de pagamento são do mais prático que existe, mas uma vez mais fazem com que todas as transacções financeiras passem pelo jugo do poder nacional. Sim, a monitorização das redes sociais contribui para um clima de paz social muito melhor, mas impossibilita qualquer levantamento popular, organização ou insurreição, e dificulta a escrutinação democrática face a eventuais abusos de poder. E sim, o PCC tem uma visão de longo prazo fenomenal que permitiu (e continua a permitir) desenvolver o país a um ritmo alucinante, mas isso apenas acontece porque a democracia não existe, pelo que os poderes instalados não são obrigados a medidas eleitoralistas para se manterem no poder. É possível pensar a 10, 20 ou 30 anos, porque não existe a preocupação de perder eleições dentro de 4.

No entanto, e mesmo ciente de tudo isto, não consigo afastar a admiração pelo PCC. E assim, de forma rápida e decisiva, percebo que nem eu estou imune ao populismo que tanto crítico no Ocidente, vendo esvanecer-se todo o pensamento político que desenvolvi ao longo dos últimos anos. Afinal, se calhar o meu problema não é com o autoritarismo, mas sim com a sua cor, e talvez só me tenha indignado com a mudança política em curso no Ocidente porque não me revejo nos ideais ultraliberais (na economia) e ultraconservadores (nos costumes). Qual clube de futebol, percebi que é para mim fácil justificar crimes, abusos de poder e tiques autoritários, desde que os mesmos sejam cometidos em nome de uma ideologia que apoio. Não sou diferente dos outros.

Quiçá seja porque as políticas efectivamente resultaram e a vida dos Chineses está incomparavelmente melhor… mas a que preço? Se toda a política é cíclica, é provável que dentro de algumas gerações venhamos a descobrir aqui na Europa. Talvez o percurso seja o mesmo, mas no quadrante político oposto ao que temos visto crescer, começando com um voto tímido e desaguando num apoio cada vez menos envergonhado à medida que a onda inevitavelmente cresce, destruindo tudo no seu caminho.

Por agora, fico-me por esta sensação contraditória e irreconciliável de uma admiração tímida que me permite responder “China” à frase “diz-me então lá um sítio onde o Comunismo funcione” – mesmo que a outrora imaculada pureza ideológica Marxista do PCC já há muito se tenha vergado à realidade da geopolítica e do globalismo. Tal como lhe chamou Deng Xiaoping, sobra o “socialismo com características Chinesas”. Seja como for, dizem que a descida rumo ao totalitarismo e extremismo não é uma queda repentina, mas sim uma rampa deslizante. Depois da minha passagem pela China, sinto que estou perigosamente sentado na berma.

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