Em mais uma paragem do seu périplo pelo Iraque, o nosso editor visita os emblemáticos Pantanais da Mesopotâmia, onde reside a tribo dos Marsh Arabs. Uma realidade dura e recôndita, onde a população vive em cabanas de palha e cana, cria búfalos e vive quase exclusivamente do que este ecossistema lhes dá. Um choque de realidades, pelo olhar de uma criança.
A manhã começa cedo na recôndita cidade de Nasiriyah, no sudeste do Iraque. Depois de uma boa noite de sono no único hotel semi-decente da cidade, faço-me à estrada para visitar as Arab Marshes, que, numa tradução livre e tosca para português, pode ser interpretado como “Os Pantanais Árabes” ou “Os Pantanais da Mesopotâmia”.
É aqui que reside a tribo dos Marsh Arabs, uma minoria étnica Iraquiana que vive, literalmente, no meio dos pantanais. São uma sociedade bastante tradicional e conservadora, praticando uma filosofia de autossubsistência que passa, acima de tudo, pela agricultura, criação de gado (especialmente búfalos) e venda de têxteis. Este é, de resto, um factor a ressalvar no Iraque, onde franjas bastante densas da população ainda sabem perfeitamente qual a tribo a que originalmente pertencem, contribuindo ainda mais para uma segmentação da sociedade civil, já de si fortemente dividida por etnia, língua, credos, ideologias políticas e sectas do Islão. Neste caso específico, a divisão é acentuada pela perseguição a que os Marsh Arabs foram sujeitos por parte de Saddam Hussein. Uma vez que muitos dissidentes e opositores políticos se costumavam esconder nos pantanais e a tribo local organizou mais tarde uma tentativa de rebelião contra a descriminação a que, enquanto Xiitas (Saddam era Sunita), eram sujeitos, o sanguinário ditador tomou a decisão de drenar uma quantidade abismal destes pantanais. Quase 2/3, como retaliação pela sua ousadia. Como resultado, muitos Marsh Arabs foram obrigados a deixar as suas terras, fosse por falta de espaço para viver ou cultivar, sendo assim forçosamente obrigados a adaptar o seu estilo de vida ao da generalidade do país. Uma espécie de genocídio da sua cultura, tradições e modo de vida.
Para chegar perto dos pantanais, é necessário chegar até à pequena e desconhecida localidade de Chibayish, a cerca de 1 hora de Nasiriyah. Não existem autocarros no Iraque, por isso o transporte colectivo é assegurado unicamente por táxis, habitualmente partilhados entre desconhecidos para divisão de custos. Desloco-me à “Garage” local, o nome que se dá no Iraque às centrais físicas onde centenas destes veículos amarelos e brancos aguardam pelos passageiros, e entro prontamente num carro para Chibayish. À medida que me desloco mais para sul, as já tórridas temperaturas de Bagdad e arredores vão ficando ainda mais insuportáveis. Quando chego ao destino, o termómetro já bate nos 40.
Depois de tratadas todas as formalidades e negociações, sou recebido no porto local por um barco típico, conduzido por um pequeno núcleo familiar composto pelo pai e os seus dois filhos pequenos. O rapaz, caçula, é um verdadeiro traquinas, mas a minha atenção centra-se na filha mais velha, uma menina com os seus 6/7 anos. O seu vestido colorido e porte pequeno contrastam com a destreza com que se move pelo barco – para trás e para a frente, para a frente e para trás – e com a tranquilidade com que se responsabiliza pela ancoragem da embarcação sempre que atracamos em qualquer lugar, amarrando um suporte de madeira aos canaviais de cada ilhéu com um pedaço de tecido negro, dando cuidadosos nós bem apertados.
A atmosfera nas “marshes” é singela e pitoresca. O barco ziguezagueia pelo curso da água e atravessa pequenas ilhas artificiais, nas quais cada família ergue as suas casas rudimentares, feitas exclusivamente com canas dos pantanais (parecido com vime), palha, excrementos de animal e corda. Ao lado, estão as inevitáveis cercas para separar a zona habitacional daquela onde o gado é criado. Pelo caminho, o avistamento de búfalos, que vão nadando mesmo ao lado dos barcos, é uma recorrente. É uma vida dura e repetitiva, onde não há outra opção que não passe por sobreviver daquilo que o meio oferece. Do peixe que enche as águas dos pantanais, dos búfalos que fazem deste ecossistema o seu habitat, ou da plantação de arroz, propensa a desenvolver-se num meio com tanta abundância de água. Apesar disso, as secas constantes têm já um efeito notório nas “marshes”, e aqueles com quem vou falando fazem questão de repetir que o caudal está anormalmente baixo face a anos anteriores.
Depois de visitarmos a casa da família e regressarmos ao barco, a menina senta-se na proa, mesmo em frente ao meu lugar. Irrequieta, vai mudando de posição consoante o seu apetite, começando por se sentar virada para mim. A sua estatura reduzida não lhe permite chegar com os pés ao chão enquanto se senta na dianteira da embarcação, e por isso pousa os seus pés descalços em cima dos meus para que as suas pernas não balancem com o trepidar da viagem. Tento chamar a sua atenção, mas ela não parece muito para aí virada. Dou-lhe toques com os pés, tiro-lhe fotografias, sorrio para ela. A pequena criança, de tez morena, vai olhando de regresso, mas raramente reage. Está demasiado compenetrada enquanto rói um pequeno pedaço de cabedal, amarrado a um gancho de pesca. Quando, ao fim de 5 minutos, consegue finalmente separar os dois objectos, expressa pela primeira vez um sorriso rasgado, orgulhosa pela sua façanha. Apesar das barreiras linguísticas, consigo perguntar-lhe o nome, respondendo-me com um “Waddah”, à medida que acena afirmativamente com a cabeça quando aponto para ela e repito o nome que acabara de me dizer.
A partir daí, Waddah começa a interagir com maior frequência. Sorri de volta, retira pequenos pacotes de água de um compartimento do barco enquanto me pede segredo e solta até uma gargalhada quando retiro uma pequena cana seca dos pantanais e a começo a picar com a ponta da mesma. No entanto, há sempre um certo semblante de apatia e tristeza no olhar de Waddah. Um peso que se sente no seu sorriso pouco acentuado, ou na forma contemplativa como se vira e fica simplesmente a mirar o infindável manancial a que chama de casa. Como se, mesmo sem saber, soubesse na realidade a vida que a espera. Durante as quase 2 horas que passei nas marshes, vi apenas 2 mulheres, totalmente cobertas de negro da cabeça aos pés, apesar do calor tórrido que se faz sentir. Não vi hospitais, não vi instituições culturais e não vi sequer escolas, o que provavelmente explica o porquê de Waddah estar neste barco a meio de uma quinta-feira. Apenas um belo mas imenso vazio de perspectivas, onde cada geração está condenada a levar a mesma vida que os seus antepassados. Um lugar duro e austero, desadequado aos impulsos de uma criança aparentemente tão inquisitiva, energética e obstinada.
A viagem chega ao fim, e sou encaminhado para uma outra casa típica, desta feita em terra firme. A pequena família acompanha-me por alguns minutos, antes de regressar ao seu barco, com a menina a correr porta fora, sem sequer se despedir ou olhar para trás. Talvez seja melhor assim. Os imperdoáveis e rígidos Pantanais da Mesopotâmia não são lugar para sentimentalismos. Boa sorte, Waddah. Vais precisar.
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